Aborto: A caminho da liberação?

De acordo com novo texto do Código Penal, interromper gravidez até 12ª semana com atestado médico não será mais crime. Mudança causa controvérsia e divide opinião de médicos e advogados

Por www.dm.com.br

 

Uma das grandes novidades do novo Código Penal Brasileiro (CPB) é a descriminalização do aborto por decisão da gestante até a décima segunda semana de gestação, desde que ela possua um atestado de um médico ou psicólogo constatando que a “mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade”, afirma o texto. A medida, que ainda passará por votação no Congresso Nacional, é motivo de controvérsia entre juristas e médicos. Os primeiros defendem e acreditam que o texto está correto, mas os segundos denunciam imprecisão na nova redação e também falta de critérios claros para definir quando a gestante não tem condições de levar a gravidez adiante.

O texto ainda inclui a descriminalização do aborto no caso de anencefalia do feto, decisão já pacificada no Supremo Tribunal Federal (STF), que em abril deste ano decidiu que grávidas de bebês sem cérebro podem optar por interromper a gestação com assistência médica, sem que o caso seja considerado crime. Outras situações, como a interrupção da gravidez em caso de risco à vida da mãe, ou de gestação resultante de abuso sexual ou estupro, continuam com a mesma redação de antes e não apresentam alterações.

Apesar da exceção, o documento, formulado por uma comissão de juristas, reafirma que o aborto prossegue como crime. “A comissão rejeitou propostas no sentido de considerar o aborto apenas como questão de saúde pública, descriminalizando-o (...) Sem o crime, a prática poderia ser adotada de modo fútil ou caprichoso, como forma de controle de natalidade incompatível com a ordem constitucional defensora da vida”, diz o documento, formulado pelos juristas, ao justificar a não descriminalização total da prática. Segundo a comissão, a decisão de inovar com a liberação do aborto seria para casos, como exemplifica o texto, de pessoas em estado mórbido, como a adicção (dependência) por entorpecentes, verificados por médicos. Nesse caso, a tipicidade criminal seria afastada.

O advogado criminalista e juiz do Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)-Seção Goiás, Carlos Márcio Rissi Macedo, diz que em relação à liberação do procedimento em caso de anencefalia não há grande novidade, muito embora o assunto não deixe de ser polêmico. “O ponto que é inédito, e acredito, provoca maior polêmica, é a previsão da possibilidade de abortamento por vontade da gestante”, ressalta Macedo, já prevendo repercussões caso a medida seja aprovada.

Para o presidente do Conselho Regional de Medicina de Goiás (Cremego), Salomão Rodrigues, a reformulação do Código Penal, nessa parte, está muito imprecisa, porque não formula quais são as condições em que a mulher não tem condições psicológicas de arcar com a maternidade. “Essa não é um boa técnica, da forma que está descrita. É uma maneira velada de legalizar o aborto pelo desejo da mãe”, diz o médico, afirmando que o tema é muito polêmico para deixar dúvida.

Segundo o presidente, a lei atual em vigência é clara em relação ao aborto, mas deixou muito a desejar, com a atual reformulação. “Esse é um tema tão polêmico que não pode ficar somente no parlamento. A sociedade precisa colaborar numa definição mais clara. O texto tem de dizer o que a sociedade pensa e deseja”, afirma Salomão Rodrigues. Segundo o presidente do Cremego, o assunto deve seguir o mesmo caminho das mudanças sobre o desarmamento, quando foi realizado plebiscito.

Conforme o médico, existem condições claras em que a pessoa não tem condições de arcar com a maternidade, como no caso de uma pessoa que possui esquizofrenia e que tem surtos constantes. “Mas, por outro lado, o que dizer de uma pessoal em perfeitas condições de saúde, que tem condições plenas de levar a maternidade adiante, mas que deseja fazer o aborto?”. Esse é um dos questionamentos do especialista, quando exemplifica a divergência que a nova lei, se aprovada, pode causar.

O médico diz ainda que o novo texto provoca uma transferência de responsabilidade que não deve ser dos médicos. “O que devemos avaliar é se a gestação traz algum risco à saúde da mãe, e não se ela tem condições de arcar com a maternidade, porque isso envolve questões bioéticas muito mais amplas que o direito da mãe de interromper ou não a gravidez”, crítica.

Na avaliação de Salomão, a redação foi feita de forma muito simplificada, e a questão é muito mais complexa. Por isso, ele acredita que, do jeito que está, o texto deve ser modificado no Congresso. “Os parlamentares vão questionar o assunto. A nova lei pode dar margens para várias interpretações e, nesse caso, é necessário ser bem preciso”, pontua.

Salomão diz que, pessoalmente, é contra o aborto, já que existem métodos anticoncepcionais suficientemente seguros, mas acredita que uma possível legalização do ato pode contribuir para que quem busca métodos clandestinos faça um procedimento com menor risco de lesão grave ou até mesmo de morte.

Carlos Márcio Rissi Macedo avalia que o texto, por se tratar de norma penal não incriminadora à margem de interpretações, pode até ser benéfico, cabendo ao operador do direito, no caso concreto, avaliar a ocorrência ou não de crime. “O que temos que compreender é que a existência de um texto legal criminalizando todo e qualquer tipo de aborto não é capaz de impedir a prática da conduta. Tenho convicção de que nenhuma mulher que deseja interromper clandestinamente uma gestação deixa de praticar o aborto por existir lei penal que incrimine tal conduta”, lembra o advogado.

Segundo Carlos, o Brasil tem estatísticas que apontam para quase um milhão de abortos anualmente, sendo a maior parte deles mal sucedidos, o que representa a quarta maior causa de mortalidade materna. “Ou seja, o problema é de saúde pública, e não de legislação criminal”, afirma.

Sobre as críticas que o texto recebe do presidente do Cremego, o advogado diz que é absolutamente impossível que a legislação estabeleça critérios para a definição do que é “condições psicológicas”. “Esta é uma definição médica e psicológica, tal qual o código atual utiliza e o projeto atual reitera, quando estipula que a lesão corporal terá pena mais elevada se causar à vitima ‘perigo de vida’. O que é perigo de vida? É um conceito médico. Concordo que toda novidade causa certa espécie de insegurança, mas acredito que não há meios de o legislador ser mais preciso.”

O membro da OAB também diz que é preciso deixar claro que não é o parecer do médico ou psicólogo que irá decidir se o aborto irá ou não ser realizado. “A decisão será sempre da gestante ou no caso de incapacidade, de seu representante legal. O pareceres são apenas uma formalidade a ser cumprida para exclusão do crime, mas a decisão caberá à gestante”, afirma.

Segundo Macedo, a legislação não necessita de complementos, mas os Conselhos Federais de Medicina e Psicologia poderiam estabelecer, por resoluções, normas técnicas e parâmetros, natureza ético-profissional tal qual já existe para os casos de Eutanásia e Ortotanásia. Mas isso ira acontecer se o projeto vier a ser aprovado, o que o advogado não acredita muito. “Pelo perfil conservador do Congresso Nacional, acho que dificilmente o texto final terá a mesma redação do Projeto. Acredito que o abortamento de fetos anencéfalos tenha grande chance de ser aprovado, mas o que permite a interrupção da gestação por ausência de condições psicológicas da gestante terá poucas chances de constar do texto definitivo”, ressalta.

 

Apoio

O presidente do Conselho Regional de Psicologia, Wadson Arantes Gama, diz que o profissional da área, em sua avaliação, deve dar espaço para que a gestante possa refletir sobre o assunto, mas que ele não pode intervir ou influenciar na escolha ou tomada de decisão. “A avaliação servirá como um espaço para que a pessoa reflita e tenha maior segurança na sua decisão. Ela tem que estar pronta para sua decisão, baseado em seus desejos. Não adianta abortar por pressões de namorado ou família ou não abortar por pressões religiosas. O psicólogo tem que conseguir com que a pessoa faça uma relação tranquila do seu desejo e seus sentimentos”, explica.

Ainda segundo Wadson, no atestado, o profissional não pode sugerir ou determinar uma ação. Quem tem que perceber qual a decisão mais correta a ser tomada é a própria pessoa. “Ela deve ser autora de sua própria história”, explica.